Na maioria dos textos de economia e finanças existe a noção que a banca é um simples intermediário entre os depositantes e as pessoas/empresas/instituições que pedem dinheiro emprestado (mutuários). Esta noção está tão arreigada no ADN financeiro e económico que o dinheiro é considerado como sendo totalmente neutral na economia. No entanto, a realidade é muito diferente e neste artigo tentarei fazer uma pequena abordagem a um tema que é pouco conhecido mas que tem grandes consequências no desenvolvimento dos ciclos de crescimento e queda do sistema financeiro.
Karl Marx dedica um capítulo importante no terceiro volume de “O Capital” ao capital fictício, onde afirma que o capital (financeiro) carece de valor real e que está na origem das crises cíclicas do capitalismo. Schumpeter, von Mises e Keynes também fizeram referências a este tema no sentido de uma melhor compreensão da natureza do dinheiro e do papel dos bancos no mundo actual. No entanto, este é um tema largamente silenciado apesar de estar na origem de todas as crises financeiras.
Mas também é preciso admitir que apesar de se dizer que “os bancos criam dinheiro a partir do nada“, que isso é um exagero e que pode induzir em engano os menos entendidos na matéria, sendo necessário clarificar que os bancos criam dinheiro a partir de algo. A questão é: o que é esse algo? E o que há de mal nisso?
A resposta está no facto dos bancos criarem dinheiro com base nas promessas dos seus devedores em realizarem pagamentos no futuro. Em muitos textos de economia e finanças faz-se crer que os bancos simplesmente tomam o dinheiro dos depositantes e o emprestam aos mutuários (devedores). Esta é uma visão errada da situação. Até mesmo a Reserva Federal Norte-Americana nas suas publicações (Modern Money Mechanics – Mecânica do Dinheiro Moderno, explica o processo da criação de dinheiro:
O processo real de criação de dinheiro é levado a cabo principalmente pelos bancos privados… os passivos dos bancos são aceitáveis como dinheiro. Estes passivos são as contas dos clientes, as quais aumentam quando o banco concede empréstimos que são creditados nas contas dos mutuários… Este atributo exclusivo do negócio bancário foi descoberto há muitos séculos. Começou com os ourives… Estes foram os primeiros banqueiros que inicialmente forneciam um serviço de custódia, obtendo benefícios por guardarem nos seus cofres o ouro e as moedas dos depositantes. Cada vez que alguém precisava de ouro ou de moedas para comprar algo, trocava um “recibo de depósito”. Com o passar do tempo, pensaram que seria muito mais fácil utilizar directamente os recibos de depósito como meio de pagamento. Estes recibos eram aceites como dinheiro já quem os tinha na sua posse podia ir ao banco trocá-los por dinheiro metálico… Foi então que os banqueiros descobriram que podiam fazer empréstimos simplesmente entregando as notas promissórias aos mutuários. Desta forma, os bancos começaram a criar dinheiro.
Operações de criação de dinheiro
Os bancos têm duas funções principais. Actuam como depositários na realocação de fundos dos depositantes e na emissão de empréstimos que rentabilizam as promessas dos mutuários. Neste ponto, a banca pode criar dinheiro de boa-fé quando empresta com base em depósitos existentes, ou de má-fé quando o faz sobre depósitos inexistentes. Na seguinte tabela vemos o detalhe de um depósito de 100 euros num banco que mantém uma taxa de reservas de 10 por cento. O banco pode emprestar 90 euros, e esse novo depósito de 90 euros dá origem a uma nova reserva de 9 euros e um novo empréstimo de 81 euros. No final da cadeia e quando a soma das reservas alcança os 100 euros iniciais, a banca criou 900 euros. Desta forma, se a taxa de reserva é de 10 por cento, a banca multiplica por 10 o depósito inicial convertendo-o em 1000 euros. O multiplicador monetário (m) é o inverso das reservas bancárias (r): m=1/r
Quando isto acontece é porque os bancos não emprestaram de boa-fé e porque se excederam nas atribuições de empréstimos. Por outro lado, nos períodos de crescimento há uma concorrência louca no sentido de emprestar dinheiro a pessoas que não têm qualquer possibilidade de o devolver. Foi o caso da Fannie Mae e Freddie Mac nos Estados Unidos, por exemplo. Não será por isso de estranhar o encobrimento das taxas de incumprimento ou de morosidade que bateram recordes históricos.
A criação de dinheiro com base em empréstimos foi um dos imperativos do crescimento do actual modelo económico baseado na dívida. Mas como os empréstimos excederam a boa-fé e os princípios básicos da sustentabilidade do capitalismo, surgiu esta longa crise que ainda está longe de terminar. Se queremos uma sociedade sustentável e garantir a sobrevivência da civilização, temos de reformular a importância do dinheiro e de reinventar um sistema financeiro sem excessos, nem abusos.
Mais informações e referências | Modern Money Mechanics, Money creation in the Modern Economy